quinta-feira, 5 de julho de 2012

Memórias do Vaticano II

«Posso agora dizer, como é verdadeiramente digno e salutar, que se comemora hoje – 11 de Outubro de 2002 – o 40º aniversário do início dos trabalhos conciliares, em Roma, a 11 de Outubro de 1962. Outro dia perguntaram-me se eu me lembrava do que fiz nesse dia. Não me lembro. Mas lembro-me muito bem que estava em casa da Maria Leonor e do Nuno Bragança, quando, à hora do jantar, o Nuno chegou a casa a dizer que o Papa tinha anunciado, em São-Paulo-Fora-de-Muros a dezoito cardeais, a sua intenção de convocar um Concílio. Foi a 25 de Janeiro de 1959, cinco meses menos um dia antes do nascimento do meu filho mais velho.

O Papa era João XXIII, eleito a 28 de Outubro de 1958, aos 77 anos. Quando se soube dessa eleição, o mesmo Nuno – sempre o mesmo Nuno – comentou comigo que o Espírito Santo talvez se tivesse distraído um bocadinho. Depois do longo pontificado de Pio XII (1939-1958) dizia-se que a Igreja precisava de um ‘papa de transição’, que não reinasse muito. Um papa que não fizesse ondas. Será que havia esse tempo a perder, perguntava-me e perguntava-se o Nuno. Mas a homilia de coroação já foi uma surpresa. Ao assumir-se como Bispo de Roma, ‘irmão de todos os bispos do universo’, retirando a primazia à chefia da Igreja universal, tão proclamada por Pio XII, João XXIII espantou pela vez primeira (ou pela segunda, já que a escolha do nome também deixara muitos perplexos, pois que joões papas os não havia desde o século XIV).

Mas a 25 de Janeiro de 1959 aconteceu muito mais. Um Concílio? Ninguém pensava nisso. E muito menos num concílio para aproximar a Igreja do mundo então contemporâneo. Daí o nosso entusiasmo nesse dia. Algo ia mudar. Uma nova era. Um Concílio – o 22º da História da Igreja – ia fazer parte da nossa história, quase cem anos depois do Vaticano I, que não era santo do nosso altar. Reforma da Igreja como Povo de Deus. Diálogo com os outros cristãos. Diálogo com o mundo. Durante os trabalhos pré-conciliares, estes forma os três grandes vectores de orientação do pensamento de João XXIII. Marcaram igualmente a primeira sessão conciliar (Outubro a Dezembro de 1962), a sessão que ‘tomou o pulso à Igreja’. Depois, foi a Pacem in Terris. Depois, a morte de João XXIII (3 de Junho de 1963, aos 81 anos, cinco anos incompletos de pontificado).

Mas quem viveu esses anos, por exemplo em Portugal, recorda um clima como nunca mais se viveu na Igreja. Aqui, a política deu-lhe um tempero especial. O reinado de João XXIII coincidiu com o exílio do Bispo do Porto, com as primeiras manifestações de católicos contra o regime, com o Santa Maria, com o fim da Índia Portuguesa e com o começo da Guerra de África, com os movimentos estudantis, com os livros da Moraes, com o aparecimento da Pragma e de O Tempo e o Modo. A propósito de tudo, discussões frementes e veementes. O baluarte católico era o primeiro dos bastiões do salazarismo a mostrar rombos. A Seara Nova, revista marxista, publicava o retrato do papa na primeira página, coisa inimaginável nos quarenta anos de vida da revista. Em meios muito conservadores, rosnava-se que já tinha havido outro João XXIII, anti-papa. Quem se seguiria?

Quanto rezámos para que o sucessor fosse esse cardeal Montini, que já tínhamos sonhado ver suceder a Pio XII. E foi Paulo VI. No dia a seguir à eleição, visitei Mário Dionísio, então meu colega como professor no Camões, que estava hospitalizado. Marzista dos quatro costados, militantemente agnóstico, saudou-me com um largo aceno: ‘Vocês agora têm um Papa a valer’. Sorri-lhe, orgulhoso.
Mas cedo começaram algumas reticências sobre o novo Papa. ‘Forma Pacelli, fundo Roncalli’, dizia-se. Quando saiu a Ecclesiam Suam, primeira encíclica de Paulo VI, escrevi n’O Tempo e o Modo um artigo que procurava desesperadamente provar (ou ‘poeticamente’ provar, como me acusava, de Roma e da ‘Capela Sinistra’ o Manuel Lucena, que me recordava que o mais poético nem sempre é o mais verdadeiro), que Paulo VI evoluía na continuidade do seu predecessor.

Foi mais fácil sustentá-lo na 3ª sessão (14 de Setembro a 21 de Novembro de 1964) e na 4ª (28 de Setembro a 8 de Dezembro de 1965). Em 1964, no mesmo O Tempo e o Modo um certo Manuel Frade já via nos textos conciliares ‘muito mais da multissecular sabedoria da Igreja do que daquele pouco da ‘loucura de Deus’ de que todos os homens têm fome’. E acrescentou: ‘O milagre não se deu’.

Mas, se institucionalmente se não deu (e dos milagres aos cismas, vai às vezes um passo, como recordou outro padre conciliar) para mim esses anos – anos da Concilium que a Helena Vaz da Silva espalhou por Portugal e pelo Brasil – foram anos milagrosos. Quem me tirasse esses anos não me tirava tudo, mas tirava-me muito. Como escreveu José Bergamín, esses foram anos em que ‘on respire au Vatican/Une aura si idyllique/Que le Diable devient chrétien/Tout en restant catholique’.»

Um excerto retirado de Joao Bénard da Costa, «Crónicas: Imagens Proféticas e Outras» (1º volume), Lisboa 2010, págs. 78-81

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