sábado, 17 de março de 2012

50 Anos Depois...

Este ano passam 50 anos sobre um dos acontecimentos mais importantes do século XX: o Concílio Vaticano II, que o Papa João XXIII abriu em Outubro de 1962. Sem ele, é impossível imaginar o que seria hoje a Igreja Católica e, por arrastamento, o mundo.

Quem não viveu a situação e quiser aproximar-se do que era então a Igreja vá ler os manuais de teologia dogmática, de teologia moral, de direito canónico, de liturgia, pelos quais estudavam os futuros padres antes do Concílio. Pense-se, por exemplo, que, na década de 50 do século XX, ainda se proibia às freiras a leitura da Bíblia e que estava em vigor o Índex ou catálogo dos livros proibidos aos católicos, onde figuravam não só teólogos e críticos da Igreja, mas também os pais da ciência e da filosofia modernas e grandes nomes da literatura.

Quando se lê essa lista, se não se mantiver algum humor, fica-se atónito. Depois, é preciso lembrar que, por exemplo, o insigne renovador da moral católica, padre B. Hãring, escreveu, pouco antes de morrer, que tinha passado por dois processos na sua vida - o que lhe fez a Gestapo na segunda guerra mundial e o que lhe fez o Santo Ofício em Roma - e assegurava que o da Gestapo tinha sido mais suportável do que o do Santo Ofício. E o padre Y. Congar, eminente professor de teologia e, no final da vida, nomeado cardeal, escreveu à mãe, já anciã, a partir da sua experiência de censura por parte do Vaticano: "Praticamente destruíram-me. Na medida da sua capacidade destruíram-me. Não tocaram o meu corpo; em princípio, não tocaram a minha alma. Mas a pessoa de um homem não se limita à sua pele e à sua alma. Sobretudo, quando esse homem é um apóstolo doutrinal, ele é a sua actividade, é os seus amigos, as suas relações, é a sua irradiação normal. Tudo isto me tiraram; espezinharam tudo isso, e feriram-me profundamente. Reduziram-me a nada e, consequentemente, destruíram-me. Em certos momentos, sou prisioneiro de um imenso desconsolo."

O Vaticano II foi, depois da decisão, logo no início, da aberrora do cristianismo aos gentios, o acontecimento mais importante para a história da Igreja. Foi a partir dele que ela se viu como verdadeiramente Universal, já não romanocêntrica, com sucursais ou filiais espalhadas pelo mundo. A Cúria Romana, mesmo que de forma tímida, internacionalizou-se, e as Conferências episcopais adquiriram autonomia. 0s leigos assumiram responsabilidades na Igreja, que se autocompreendeu mais como Povo de Deus.
A Igreja tentou então uma reconciliação com a modernidade, estabeleceu-se uma atitude fundamentalmente positiva em relação à democracia, à ciência, ao progresso, afirmou-se claramente a liberdade religiosa e de consciência, os direitos humanos foram inequivocamente afirmados, reconheceu-se a separação da Igreja e do Estado, do poder religioso e do poder político, a autonomia das realidades terrestres, da ciência, da economia, da política, da própria moral. Abriu-se uma era ecuménica, assumindo a Igreja muitas das exigências da Reforma. Outras comunidades cristãs foram reconhecidas como Igrejas, as celebrações litúrgicas viram consagrado o uso das línguas vernáculas, o padre deixou de celebrar de costas para o povo, a Bíblia tomou o seu lugar central na liturgia, na pregação e na vida dos crentes, e o seu estudo histórico-critico devia ser continuado. Condenou-se o anti-semitismo com o qual a Igreja tinha sido cúmplice, abriu-se um caminho novo de respeito, de diálogo e cooperação com todas as religiões e também com os não crentes.

A Igreja encontra-se hoje numa crise, que alguns, sem razão, querem atribuir ao ConCÍlio. Passados 50 anos, é tempo para celebrar e sobretudo para reflectir. Há dias, o novo bispo de Lamego, António Couto, foi dizendo, com razão, que, infelizmente, a Igreja comunica a sua mensagem de forma "chata". Julgo que é preciso ir mais longe e perguntar se a Igreja anuncia e pratica verdadeiramente o Evangelho enquanto notícia felicitante ou, pelo contrário, tantas vezes, o Disangelho (má notícia), como denunciou Nietzsche.
Anselmo Borges, In Diário de Notícias, 17 de Março de 2012

quinta-feira, 15 de março de 2012

A Hora do Concílio é Hoje


1. No programa de actividades do centro cultural Le Saulchoir (Paris), para 2011-2012, consta um seminário de mestrado subordinado à questão: "Haverá futuro para as religiões nas sociedades secularizadas?" Essa pergunta supõe que as religiões perderam, desde há várias décadas, o monopólio da oferta de um sentido para a aventura humana. A descristianização das sociedades europeias, a desinstitucionalização da prática religiosa, a subida crescente do pluralismo religioso e do individualismo em todos os aspectos da vida em sociedade, o aumento crescente do poderio da técnica apresentam-se como sinais da pluralização do sentido. Mas estaremos condenados a renunciar a toda e qualquer representação religiosa ou espiritual do sentido da existência humana, individual e colectiva?
Dada a complexidade e amplidão do fenómeno, é normal que o seminário tenha convocado especialistas nas áreas da Filosofia, da Ética, da Teologia, da Antropologia e da História. As religiões valem enquanto expressões da vida profunda. A denúncia das suas imposturas e a desconstrução das suas representações insensatas - de que Jesus Cristo foi um mestre incomparável - não podem esquecer os seus imensos recursos, na diversidade das suas formas, para configurar o sentido da aventura humana. Como dizia José Régio, os que falam da religião como alienação suprema não podem compreender de quantas alienações ela nos liberta. A esperança de que a própria morte é trânsito misterioso para o grau mais evoluído da existência é profundamente humanista.
2. As lideranças que não assumem a historicidade das expressões e organizações religiosas confundem a fidelidade com idolatrias dogmáticas e não enxergam o anacronismo dos preceitos que não respeitam os direitos humanos. As religiões vivem da comunhão dos tempos, mas, segundo Jesus Cristo, o espírito do vinho novo pede odres novos para não deitar tudo a perder. Sem a clarividência e a divina coragem do Papa João XXIII - um velho com sonhos – a Igreja Católica Romana não teria vivido a grande revolução que nenhuma traição ou eclipse poderá apagar. As investigações, colóquios, debates, conferências e publicações em curso sobre o papel do Vaticano II vão ter frutos. John W. O"Malley (What Happened at Vatican II) retraçou, de forma exemplar, o que aconteceu, desde o seu anúncio, a 25 de Janeiro de 1959, até à celebração da sua clausura, a 8 de Dezembro de 1965. Faz reviver, passo a passo, os grandes debates conciliares, o trabalho das comissões e as relações, por vezes difíceis, entre Paulo VI e a assembleia dos bispos. Mas, ao destacar as diferentes correntes que se afrontaram, evita a sua caricatura e as leituras simplistas de uma oposição evidente e renhida entre progressistas e conservadores.
É evidente que já não estamos em 1959 nem no ano 2050, mas é precisamente a ruptura e a comunhão dos tempos que exige perguntas básicas. O que representou o concílio para as gerações que o viveram? O que aconteceu para passar a ser ignorado ou silenciado durante décadas? O que fazer agora para que as gerações actuais de católicos - num mundo onde se alargam as desigualdades, cresce a pobreza e se agrava a crise ambiental - assumam, com todos os seres humanos de boa vontade, religiosos ou não, a reconfiguração de um presente que escute as vozes do passado e se abra o futuro? O puro actualismo é uma ficção. A história é uma caixa de surpresas. Não temos o mundo com que sonhámos. Por outro lado, o ritmo das mudanças, sobretudo a nível científico e técnico - com repercussões em todas as áreas, mesmo na religiosa -, é tão rápido que, em muito pouco tempo, o que era solução aparece como problema.
3. Dir-se-á que isto é uma cedência ao relativismo, uma indiferença aos valores perenes. Talvez não. É uma cautela com os projectos megalómanos que esquecem a historicidade da nossa condição humana e, portanto, também da condição da Igreja, que ganhará com uma espiritualidade do provisório. Se uns gostam de rezar, "assim como era no princípio agora e sempre pelos séculos dos séculos", outros preferem a oração do "pão nosso de cada dia", recomendada pelo próprio Jesus. Tomar a sério a interfecundidade do diálogo com ateus, agnósticos, com outras configurações religiosas do Oriente e do Ocidente, com outras Igrejas cristãs é um imperativo do concílio. O mistério de Deus e do mundo é maior do que as querelas vãs em que nos perdemos.
A importância da família - com as suas diferentes tradições e as suas metamorfoses - deve estimular a Igreja Católica a repensar as uniões de facto, o casamento civil, o divórcio e o recasamento. Todas essas situações podem ajudar a Igreja a descobrir mundos que tende a ignorar e situações que precisam de evangelização. A teologia dos ministérios ordenados - serviços da comunidade cristã - precisa de ser repensada. Uma doutrina que impede as mulheres de poderem ser chamadas a receber o sacramento da Ordem continua a semear a desordem na Igreja. O documento conciliar Gaudium et Spes - Alegria e Esperança - sobre a Igreja no mundo contemporâneo é, por natureza, provisório. O seu espírito exige uma reencarnação contínua.

Frei Bento Domingues O.P., in Público, 26 de Fevereiro de 2012