1. No programa de actividades do centro cultural Le
Saulchoir (Paris), para 2011-2012, consta um seminário de mestrado subordinado
à questão: "Haverá futuro para as religiões nas sociedades
secularizadas?" Essa pergunta supõe que as religiões perderam, desde há
várias décadas, o monopólio da oferta de um sentido para a aventura humana. A
descristianização das sociedades europeias, a desinstitucionalização da prática
religiosa, a subida crescente do pluralismo religioso e do individualismo em
todos os aspectos da vida em sociedade, o aumento crescente do poderio da
técnica apresentam-se como sinais da pluralização do sentido. Mas estaremos
condenados a renunciar a toda e qualquer representação religiosa ou espiritual
do sentido da existência humana, individual e colectiva?
Dada a complexidade e amplidão do fenómeno, é normal que o
seminário tenha convocado especialistas nas áreas da Filosofia, da Ética, da
Teologia, da Antropologia e da História. As religiões valem enquanto expressões
da vida profunda. A denúncia das suas imposturas e a desconstrução das suas
representações insensatas - de que Jesus Cristo foi um mestre incomparável -
não podem esquecer os seus imensos recursos, na diversidade das suas formas,
para configurar o sentido da aventura humana. Como dizia José Régio, os que
falam da religião como alienação suprema não podem compreender de quantas
alienações ela nos liberta. A esperança de que a própria morte é trânsito
misterioso para o grau mais evoluído da existência é profundamente humanista.
2. As lideranças que não assumem a historicidade das
expressões e organizações religiosas confundem a fidelidade com idolatrias
dogmáticas e não enxergam o anacronismo dos preceitos que não respeitam os
direitos humanos. As religiões vivem da comunhão dos tempos, mas, segundo Jesus
Cristo, o espírito do vinho novo pede odres novos para não deitar tudo a
perder. Sem a clarividência e a divina coragem do Papa João XXIII - um velho
com sonhos – a Igreja Católica Romana não teria vivido a grande revolução que
nenhuma traição ou eclipse poderá apagar. As investigações, colóquios, debates,
conferências e publicações em curso sobre o papel do Vaticano II vão ter
frutos. John W. O"Malley (What Happened at Vatican II) retraçou, de forma exemplar, o
que aconteceu, desde o seu anúncio, a 25 de Janeiro de 1959, até à celebração
da sua clausura, a 8 de Dezembro de 1965. Faz reviver, passo a passo, os
grandes debates conciliares, o trabalho das comissões e as relações, por vezes
difíceis, entre Paulo VI e a assembleia dos bispos. Mas, ao destacar as
diferentes correntes que se afrontaram, evita a sua caricatura e as leituras
simplistas de uma oposição evidente e renhida entre progressistas e
conservadores.
É evidente que já não estamos em 1959 nem no ano 2050, mas é
precisamente a ruptura e a comunhão dos tempos que exige perguntas básicas. O
que representou o concílio para as gerações que o viveram? O que aconteceu para
passar a ser ignorado ou silenciado durante décadas? O que fazer agora para que
as gerações actuais de católicos - num mundo onde se alargam as desigualdades,
cresce a pobreza e se agrava a crise ambiental - assumam, com todos os seres
humanos de boa vontade, religiosos ou não, a reconfiguração de um presente que
escute as vozes do passado e se abra o futuro? O puro actualismo é uma ficção.
A história é uma caixa de surpresas. Não temos o mundo com que sonhámos. Por
outro lado, o ritmo das mudanças, sobretudo a nível científico e técnico - com
repercussões em todas as áreas, mesmo na religiosa -, é tão rápido que, em
muito pouco tempo, o que era solução aparece como problema.
3. Dir-se-á que isto é uma cedência ao relativismo, uma
indiferença aos valores perenes. Talvez não. É uma cautela com os projectos
megalómanos que esquecem a historicidade da nossa condição humana e, portanto,
também da condição da Igreja, que ganhará com uma espiritualidade do
provisório. Se uns gostam de rezar, "assim como era no princípio agora e
sempre pelos séculos dos séculos", outros preferem a oração do "pão
nosso de cada dia", recomendada pelo próprio Jesus. Tomar a sério a
interfecundidade do diálogo com ateus, agnósticos, com outras configurações
religiosas do Oriente e do Ocidente, com outras Igrejas cristãs é um imperativo
do concílio. O mistério de Deus e do mundo é maior do que as querelas vãs em
que nos perdemos.
A importância da família - com as suas diferentes tradições
e as suas metamorfoses - deve estimular a Igreja Católica a repensar as uniões
de facto, o casamento civil, o divórcio e o recasamento. Todas essas situações
podem ajudar a Igreja a descobrir mundos que tende a ignorar e situações que
precisam de evangelização. A teologia dos ministérios ordenados - serviços da
comunidade cristã - precisa de ser repensada. Uma doutrina que impede as
mulheres de poderem ser chamadas a receber o sacramento da Ordem continua a
semear a desordem na Igreja. O documento conciliar Gaudium et Spes - Alegria e
Esperança - sobre a Igreja no mundo contemporâneo é, por natureza, provisório.
O seu espírito exige uma reencarnação contínua.
Frei Bento Domingues O.P., in Público, 26 de Fevereiro de 2012
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