Este ano passam 50 anos sobre um
dos acontecimentos mais importantes do século XX: o Concílio Vaticano II, que o
Papa João XXIII abriu em Outubro de 1962. Sem ele, é impossível imaginar o que
seria hoje a Igreja Católica e, por arrastamento, o mundo.
Quem não viveu a situação e
quiser aproximar-se do que era então a Igreja vá ler os manuais de teologia
dogmática, de teologia moral, de direito canónico, de liturgia, pelos quais
estudavam os futuros padres antes do Concílio. Pense-se, por exemplo, que, na
década de 50 do século XX, ainda se proibia às freiras a leitura da Bíblia e
que estava em vigor o Índex ou catálogo dos livros proibidos aos católicos,
onde figuravam não só teólogos e críticos da Igreja, mas também os pais da
ciência e da filosofia modernas e grandes nomes da literatura.
Quando se lê essa lista, se não
se mantiver algum humor, fica-se atónito. Depois, é preciso lembrar que, por
exemplo, o insigne renovador da moral católica, padre B. Hãring, escreveu,
pouco antes de morrer, que tinha passado por dois processos na sua vida - o que
lhe fez a Gestapo na segunda guerra mundial e o que lhe fez o Santo Ofício em
Roma - e assegurava que o da Gestapo tinha sido mais suportável do que o do
Santo Ofício. E o padre Y. Congar, eminente professor de teologia e, no final
da vida, nomeado cardeal, escreveu à mãe, já anciã, a partir da sua experiência
de censura por parte do Vaticano: "Praticamente destruíram-me. Na medida
da sua capacidade destruíram-me. Não tocaram o meu corpo; em princípio, não
tocaram a minha alma. Mas a pessoa de um homem não se limita à sua pele e à sua
alma. Sobretudo, quando esse homem é um apóstolo doutrinal, ele é a sua
actividade, é os seus amigos, as suas relações, é a sua irradiação normal. Tudo
isto me tiraram; espezinharam tudo isso, e feriram-me profundamente.
Reduziram-me a nada e, consequentemente, destruíram-me. Em certos momentos, sou
prisioneiro de um imenso desconsolo."
O Vaticano II foi, depois da decisão, logo no início, da aberrora do cristianismo aos gentios, o acontecimento mais importante para a história da Igreja. Foi a partir dele que ela se viu como verdadeiramente Universal, já não romanocêntrica, com sucursais ou filiais espalhadas pelo mundo. A Cúria Romana, mesmo que de forma tímida, internacionalizou-se, e as Conferências episcopais adquiriram autonomia. 0s leigos assumiram responsabilidades na Igreja, que se autocompreendeu mais como Povo de Deus.
A Igreja tentou então uma
reconciliação com a modernidade, estabeleceu-se uma atitude fundamentalmente
positiva em relação à democracia, à ciência, ao progresso, afirmou-se
claramente a liberdade religiosa e de consciência, os direitos humanos foram
inequivocamente afirmados, reconheceu-se a separação da Igreja e do Estado, do
poder religioso e do poder político, a autonomia das realidades terrestres, da
ciência, da economia, da política, da própria moral. Abriu-se uma era
ecuménica, assumindo a Igreja muitas das exigências da Reforma. Outras
comunidades cristãs foram reconhecidas como Igrejas, as celebrações litúrgicas
viram consagrado o uso das línguas vernáculas, o padre deixou de celebrar de
costas para o povo, a Bíblia tomou o seu lugar central na liturgia, na pregação
e na vida dos crentes, e o seu estudo histórico-critico devia ser continuado.
Condenou-se o anti-semitismo com o qual a Igreja tinha sido cúmplice, abriu-se
um caminho novo de respeito, de diálogo e cooperação com todas as religiões e
também com os não crentes.
A Igreja encontra-se hoje numa
crise, que alguns, sem razão, querem atribuir ao ConCÍlio. Passados 50 anos, é
tempo para celebrar e sobretudo para reflectir. Há dias, o novo bispo de
Lamego, António Couto, foi dizendo, com razão, que, infelizmente, a Igreja
comunica a sua mensagem de forma "chata". Julgo que é preciso ir mais
longe e perguntar se a Igreja anuncia e pratica verdadeiramente o Evangelho
enquanto notícia felicitante ou, pelo contrário, tantas vezes, o Disangelho (má
notícia), como denunciou Nietzsche.
Anselmo Borges, In Diário de Notícias, 17 de Março de 2012